Na semana passada descobrimos que a encarnação
de Jesus modificou os contornos do culto Vétero Testamentário. Isso quer dizer que os locais, rituais, e propósito do culto do templo Israelita ganharam dimensões
maiores, superiores. Como já esperado pelos profetas, o Messias completa e
realiza o objetivo do culto no santuário. Mas o que isso significava na prática
da igreja cristã no tempo de Paulo e hoje?
Teologia e culto
O aparecimento do Messias cumpriu o proclamado
e esperado por séculos na religião Israelita. A vinda de Jesus modificou muitas
coisas. E certamente uma delas foi o culto. Ao começar a pregar que o
carpinteiro de Nazaré era a esperança de Gn.3:15 realizada, a impressão que
tenho em ler Atos é que os discípulos não entederam completamente o impacto do
evento Cristo. Mas com o tempo, vivendo pelo Espírito, Deus os guiou no desenvolvimento
da verdade como prometera antes de morrer (Jo.16:7-13).
O primeiro indício que encontro em Atos sobre
mudança de paradigma no culto dos apóstolos é o conflito entre Pedro e os
líderes do templo. Ao ouvirem os discípulos do Mestre , a quem eles haviam matado,
no templo pregando sobre Jesus sendo o Messias, as “autoridades” religiosas os condena
(At.4:1-22). Sendo assim maltratados, os apóstolos reagem de maneira antagônica
aos líderes do templo e, consequentemente, aos seus rituais e ensinos de culto. Isso
é percebido pelo conteúdo da resposta de Pedro ao Sinédrio.
Mas a reação não involve uma mudança radical e
completa. Perceba que o grupo de Jesus continua
indo ao templo para adorar mesmo após a instituição de ‘pequenos grupos’ caseiros
(At.4:32-35; 5:12). A ida frequente ao templo é um possível indicador que eles
ainda relacionavam adoração com o templo de Jerusalém. Décadas depois, mesmo
após o concílio de Jerusalém, Paulo ainda vai ao templo participar de seus
ritos (At.21:26).
Isso não é de todo estranho, visto que no
Antigo oriente o lugar de adoração na maioria das religiões era um edifício
suntuoso chamado santuário. E mesmo porque até onde sabemos Jesus não havia
dito para eles pararem de ir ao templo, mas que pregassem primeiro em Jerusalém. E que melhor local que o santuário?!
A questão é que a teologia de tais judeus não
era mais a mesma que a 4 anos atrás (antes da vinda de Jesus). De acordo com a
pregação de Pedro, eles entenderam que Jesus era o Messias. Ele era o filho de
Davi, e que reina no trono de Deus no céu. Mas o que isso tem a ver com o culto?
Estevão aparece como o primeiro em Atos a elaborar algumas implicações do evento
Cristo no culto.
Em Atos 6 nos é informado que na região
helênica de Jerusalém (os judeus da diáspora – não Palestinos – v.8,9) surgiu
um acalorado debate envolvendo Moisés e Deus. E o personagem principal de tal
agitação era Estêvão. O v.13 afirma que os judeus que não concordavam com
Estêvão acreditavam que ele “não cessa de
falar contra o santo e contra a lei.”
Isso quer dizer, “porque temos ouvido dizer que esse Jesus, o Nazareno, destruirá este
lugar e mudará os costumes que Moisés nos deu.” (v.14) Tais argumentos e acusações
repetem o que fizeram com Cristo. Em João 2, ao purificar o templo, Cristo
afirmou que destruiria “este santuário”. No Sinédrio, perante os sacerdotes, Jesus é acusado de rejeitar os
rituais do santuário e afirmar ser Deus (contra o Santo e a Lei – ver Marcos
14:53-65 e paralelos em Mt.26:57-68 e Lc.22:63-71).
Que a causa da morte de Estêvão envolvia o
culto, a lei e o templo como interpretado por Cristo basta ver a ênfase de seu
discurso sobre o templo. Estêvão contrasta a idolatria de Israel com a adoração
verdadeira do Templo que apontava para Jesus. Visto que os atuais líderes
rejeitaram Jesus, eles eram também idólatras como os antepassados.
Mas a mais importante informação é o fato de
Jesus estar no céu com Deus (v.56 – ver 2:33; 3:19-21). Se Pedro e Estêvão
estiverem correto, que Cristo está no céu e oferece perdão/salvação, então qual
o valor dos rituais do templo e do próprio
templo? Reconhecendo talvez as drásticas implicações de tal mensagem, os
sacerdotes mataram Jesus e Estêvão, e tentaram matar Pedro e os seus seguidores. Tal
mensagem tornaria o templo insignificante, assim pensavam.
Note que com a mudança da teologia o formato
presente do culto Judeu começa a ser questionado. E o que significa a mensagem
de 1844 e a mudança de Jesus do santo para o santíssimo na liturgia cristã?
Deveria a liturgia adventista refletir o culto evangélico que não possui tal
crença? Tais reflexoes teológicas são considerações importantes que deveriam
afetar nossa maneira de cultuar. Mas, continuemos...
Teologia, missão e
culto
Logo após o debate dos judeus helenos e do
martírio de Estêvão, Lucas relaciona a figura de Paulo, da perseguição da igreja
e da pregação do evangelho fora de Jerusalém. Esses elementos são preponderantes
no desenvolvimento litúrgico no início da igreja Cristã.
A perseguição em Jerusalém fez com que os seguidores
de Jesus saíssem de Sião para proclamar Jesus em Samaria. Vemos Filipe na
região da prostituta de Sicar (lembra do discurso de Jesus sobre adoração em
espírito e verdade?!), depois sendo levado por um anjo, pregando para um africano no
deserto de Gaza, e em seguida em Azoto no norte de Gaza e em Cesareia. O movimento
da pregação reflete o mandato de Jesus em At.1:8 – Judeia, Samaria e confins do
mundo.
A missão dos seguidores de Jesus se espande com
Saulo. Primeiramente com o Saulo perseguidor; e o mais importante, quando Saulo
se converte. Pois é com a conversão de Saulo para Paulo que a missão aos confins
do mundo (Gentios) ganha proporções de impacto. E o que isso tem a ver com o
culto?
Se considerarmos que o templo era o locus
judaico da salvação e presença divina, a missão dos cristãos tem muita influência
no culto desse tempo/templo. Se Jesus é Deus, que oferece salvação, que está
atualmente no céu, e que tem o Seu Espírito habitando em qualquer lugar com os crentes em
Seu nome (Mt.18:19,20), então certamente Jesus se torna um templo, como afirmava
os Cristãos. E qual o papel dos rituais em Jerusalém?
Ao saírem de Jerusalém e pregarem fora do
templo, não só a teologia mas a missão e o culto mudam. Saulo, o assassino de
Estêvão, teve que aprender essa lição caindo do cavalo. Pedro aprendeu com um sonho e
com Cornélio. Tiago e os líderes cristãos em Jerusalém com um debate e concílio. A razão
da missão afetar o culto é simples e ao mesmo tempo complexa.
Quando saímos de nossa
zona de conforto e visões de mundo estabelecidas (tradições) os nossos hábitos
são questionados. Aos saírem de Jerusalém e entenderem que Jesus era o Salvador
do mundo não só dos Judeus como também dos gregos, e que tanto gregos como israelitas adoravam o mesmo
Criador, as tradições litúrgicas dos discípulos foram expandidas. Saia de seu
costume, de sua igreja local e vá pregar nas favelas, prostíbulos e bares, e
veja como sua visão de culto será modificada!
Com a teologia modificada e a missão expandida, a
liturgia cristã também reflete tais mudanças. Tal impacto foi reconhecido em
Jerusalém. Em Atos 15 Lucas registra o que nomeamos o primeiro concílio eclesiástico
cristão. E qual era o assunto principal da agenda? Missão e sua relação com
culto e salvação (v.1,5). Pedro é o porta-voz do grupo que advogava mudanças
na liturgia, grupo esse que incluia Paulo e Barnabé. Do outro lado estava a “seita
dos fariseus que haviam crido” (v.5).
O argumento de Pedro é: como a salvação é pela
graça, por meio de Jesus a todos que O aceitarem, o contato agora com o divino não
passa mais por meio de sacrifícios ou sacerdotes, mas sim diretamente com Jesus no
céu. Isso significa que a presença no templo em Jerusalém não era obrigatória, e que não
precisava alguém ser judeu (circuncidado) pra adorar. Lembre-se que para entrar no templo em
Jerusalém tal indivíduo deveria ser judeu circuncidado.
A decisão de Tiago, irmão de Jesus, é que o
parecer de Pedro foi confirmado pelo Espírito, e por isso deveria ser aceito
pela igreja. Os gentios que aceitassem a Jesus deveriam apenas lembrar que
adoração verdadeira não pratica idolatria, o que envolve alimentação e relações
sexuais impuras. Na decisão do concílio de Jerusalém, culto, alimentação e sexo estão intimamente relacionados.
A prática
Na prática o que Tiago deixou claro é que os
costumes judeus da época não deveriam ser padrão para todos. Porém que deveriam
ser mantidos os princípios de culto do Antigo Testamento que envolviam
tanto Israelitas como estrangeiros (Levíticos 17-19). Eu me pergunto se
como Adventistas temos entendido os princípios gerais de culto divino.
Parece que os cristãos da época de Paulo
demoraram para entender tais ideias. No livro de Gálatas e Romanos Paulo
continua a debater sobre tais assuntos. E em Atos 18, em sua segunda viagem
missionária, após o relato Lucano do concílio de Jerusalém, encontramos Paulo debatendo novamente esse
assunto.
Em Corinto, como era de costume, Paulo começa
pregando o evangelho entre seus compatriotas judeus. Na sinagoga, como bom
fariseu, ele participava do culto e lia as Escrituras sem problema. Mas ao
falar que Jesus era o Cristo, isso lhe trouxe problemas. Muitos judeus não
aceitaram tal mensagem de um messias salvador se tornando homem, crucificado,
ressurreto, prestes a vir, doador da vida e liberdade a todos os que Nele cressem.
Tal mensagem
era tão radical que os judeus da sinagoga de Corinto não só repeliram Paulo como o perseguiram fora dela na cidade. Eles pegaram Paulo e levaram-no
perante o tribunal romano, acusando-o de sedição religiosa. “Este persuade os homens a adorar a Deus por
modo contrário a lei.” (At.18:13). Ao refletir sobre esse texto me
pergunto, que lei referiam os judeus de Corinto?
Se é a lei
romana, tal acusação faria até algum sentido. É sabido que alguns imperadores
romanos, a partir de César Augustus, foram considerados deuses e a adoração a
tais era obrigatória. Desobediência incluia pena de morte. Esse foi o argumento
usado pelos líderes judaicos no ano 31 contra Jesus perante Pilatos. Lembra do
que eles disseram, “não temos rei senão
César!” (Jo.19:15). Mas certamente
tal argumento iria contra religião e lei judaica.
Se a lei de
At.18:13 se refere aos costumes Israelitas, isso pode implicar que Paulo
estaria pregando como Estêvão, contra o Santo e a Lei (o templo e os rituais
mosaicos). A resposta de Gálio me parece indicar que a segunda opção seja o
caso. “Se fosse, com efeito, alguma
injustiça ou crime da maior gravidade, ó judeus, de razão seria atender-vos;
mas, se é questão de palavra, de nomes e da vossa lei, tratai disso vós mesmos;
eu não quero ser juíz dessas coisas!” (v.14,15).
Sendo este
o caso, de Paulo seguir a teologia de Pedro e Estêvão do santuário celestial e
de mediação de Cristo no céu, note que a mensagem cristã gerou desavença na
liturgia e teologia judaica do tempo. A concepção que Deus não se limitava ao
templo em Jerusalém, que o Criador havia vivido em carne na pessoa de Jesus, e
agora intercede no céu perdoando pecados de qualquer um que crer são radicais.
E nós, Adventistas?
Em 1844,
após o desapontamento milerita de 22 de outubro, um grupo de estudantes da
Bíblia revisa suas crenças proféticas. Hiram Edson, Samuel Snow, José Bates,
Tiago e Ellen G. White, dentre outros, discutem o que aconteceu naquele dia e o
que Dn.8:14 tem a ver com salvação, culto e lei. A história se repete.
Agora não
fora a profecia de Dn.9 que mudara a teologia do povo de Deus, como nos dias de
Paulo. Porém a profecia relacionada de Dn.8:14 trouxe modificações ao
remanescente na modernidade. Enquanto o mundo cristão não sabe que Jesus está
no santuário celestial intercedendo por nós no santo dos santos, como no
ritual da expiação (e ainda rejeitam tal noção), aquele grupo com tal conceito
modificou por completo o sistema de culto cristão.
Ao afirmar
que há um santuário celestial real, onde Deus habita e Jesus o Cristo intercede
por todos os que Nele creem, os adventistas quebram com o paradigma da adoração
atual. O culto verdadeiro tem que considerar tais afirmações revolucionárias. A
existência de um juízo investigativo, de uma lei eterna, de um dia santo (o
sétimo dia do sábado), da volta de Jesus literal em breve, e do cumprimento profético
em 1844, modifica completamente a noção de culto cristão hoje.
Mas o que
modifica? Tais relações ainda precisam ser elaboradas e seriamente refletidas.
Creio que com o modelo do desenvolvimento em Atos temos muito o que aprender. A
mudança na teologia sobre Cristo (Cristologia, doutrina de Deus), seguida da
missão e soteriologia (mensagem de salvação) repercutiu fortemente na liturgia.
Movimentos como
Nova Semente (São Paulo) e Fusion (na Universidade Andrews), assim como envolvimento
com budistas e islâmicos na Ásia, têm gerado tensões na compreensão de culto no
adventismo. Essa lição da escola sabatina, o chamado para reforma e
reavivamento da Conferência Geral tem
tentado diminuir tais tensões. Porém, tenho que concordar com o professor Fernando Canale
que a discusão está longe de ser resolvida. A razão é que os membros não se
envolvem mais com a missão, e não estudam mais a Palavra de Deus em oração.
Nenhum comentário:
Postar um comentário