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segunda-feira, 5 de abril de 2021

Pandemia, lições da crise de 1918

Introdução - Pandemias

Parece que vivemos em tempos sem precedentes, da pior pandemia já vivida. Alguns de nós podem até lembrar de outras epidemias como a de HIV na década de 1980, da gripe aviária (SARS) em 1997-1998 e 2003, da gripe suína (H1N1) de 2009 e do Zika em 2015. Mas elas certamente não afetaram a vida de tantas pessoas como esse coronavírus (Covid-19). Uma outra pandemia no entanto, não tão distante, pode nos ajudar a enfrentar esse momento difícil com a esperança de que há maneiras seguras de navegar esse tempestade.

A pandemia de 1917-1919, ou gripe espanhola como ficou conhecida, matou mais de 50 milhões de pessoas e afetou a vida de praticamente o mundo inteiro.[1]  A vida da Igreja Adventista também foi afetada pelo vírus, que não encontra barreira em afiliação religiosa, étnica, ou nacionalidade. Aqui faço uma reflexão histórica sobre como a Igreja Adventista reagiu em meio a uma das maiores crises humanitárias da história, que elevou a miséria gerada pela primeira guerra mundial.

Impacto nas Igrejas

Augusta Blosser, membro da Igreja Adventista na região dos Grandes Lagos nos Estados Unidos escreveu que várias escolas e igrejas foram fechadas por períodos de até dois meses.[2]  As quarentenas, que com o Covid-19 ficamos tão acostumados e cansados de praticar, também foram implementadas em vários lugares durante a pandemia de 1917.

No auge da pandemia nos Estados Unidos, no outono de 1918, dezenas de milhares de pessoas morreram. No final de Outubro daquele ano, um obreiro da associação do leste da Pensilvânia escreveu, “A epidemia de gripe nos atingiu com uma violência antes desconhecida em nossa terra... Podemos verdadeiramente dizer: ‘A morte subiu pelas nossas janelas e entrou nos nossos palácios, para separar as crianças de fora e os jovens das ruas’ (Jer. 9:21). Não tem havido tempo para os médicos sábios se vangloriarem de sua sabedoria, ou para os ricos se vangloriarem de suas riquezas, pois a morte tem levado muitos de ambas as classes. O Departamento de Saúde foi confrontado com uma condição extremamente crítica, as placas instrutivas e pacificadoras em carros de rua e prédios públicos falam do medo e da ansiedade das pessoas. ‘Ouvimos vozes de tremor e medo, e não de paz’ (Jer. 30:5).”[3]

O presidente da Associação da Virgínia Ocidental, T. B. Westbrook, escreveu na primeira página do periódico da igreja local, “Se houve um tempo da história do mundo quando precisássemos de oferecer incenso à Deus por ajuda (oração), é agora. Todas as igrejas estão fechadas, e algumas linhas de trabalho estão paradas. A praga... se elastra por todo lado e há muitos cadáveres em todo lugar.”[4]

No mesmo periódico da União de Colúmbia, num relato da Associação da Virgínia do Oeste lemos, “No momento desse escrito, a gripe ainda se alastra na Virgínia Ocidental. Todas as nossas igrejas estão fechadas. Dois de nossos membros morreram da doença e não há nenhum sinal de que a quarentena foi suspensa.”[5] Dos membros que morreram nessa União está a irmã Rudolph que no sei leito de morte pede que seus quatro filhos sejam cuidados por Adventistas.[6]  E uma semana depois o mesmo periódico fala de Florence Grace Steinbaugh Hall que “apenas um dia antes de seu vigésimo sétimo aniversário de casamento, foi acometida pela Gripe Espanhola e, apesar de toda assistência médica, a doença tomou aquele rumo prevalente e fatal, evoluindo para pneumonia composta, e o fim veio pacificamente após uma doença de doze dias. A Sra. Hall era um membro fiel (…) tendo sido batizada na infância…”[7]  Em 6 de Maio de 1920 encontramos a triste notícia da morte de Paul Baltimore, de apenas dois anos.[8]

Durante a pandemia o dr. W. A. Ruble, secretário do Departamento de Saúde da Conferência Geral da Igreja Adventista, escreveu, “relatos horríveis são dados em cada mão de cemitérios espalhados com caixões ocupados aguardando escavadores para enterrá-los; funerárias com dezenas de corpos esperando caixões; necrotérios com suas capacidade cheias, e edifícios adicionais e até tendas requisitadas por causa do transbordamento. Entre os vivos muitos estão morrendo sem atendimento médico ou de enfermeiras. A carência de médicos e enfermeiras ocasionada pela guerra [1ª Guerra Mundial], tornou impossível suprir um serviço adequado aos necessitados.”[9] Cenas que nos lembra episódios na Itália e em certos hospitais em Nova Iorque no início da pandemia atual do Covid-19.

 Resposta da Igreja

Os líderes da denominação tomaram as devidas providências ao acolher as recomendações da comunidade científica. “A situação atual da doença é reconhecidamente séria, e as maiores autoridades médicas pedem que todos sigam cuidadosamente as recomendações de prevenção. Não tenham medo. Simplesmente cuidem bem de si mesmo, e ajudem outros a se protegerem.”[10]

O cuidado ao próximo era uma das maiores preocupações do diretor de saúde da Igreja Adventista. Em meio a tragédia, W. A. Ruble, como um dos líderes da Igreja Adventista, motiva os membros a servir os necessitados aproveitando a oportunidade de uma calamidade humanitária para difulsão do Evangelho do amor. Em um de seus artigos na Revista Adventista em Outubro de 1918 ele questiona retoricamente, “Após a Influenza, o que?” Nele, Ruble não passa tempo lamentando a tragédia, mas convocando os leitores ao serviço. Ainda em meio a pandemia, ele olha para trás, para os meses que se passaram desde o início da transmissão e lamenta, “Todo Adventista do Sétimo Dia teve dez vezes mais oportunidades de serviço que o ocuparia se estivesse pronto para recebê-las. Que chance de empenho missionário e de praticar aquela religião pura e imaculada de que fala Tiago! ”[11]

Ruble contina seu texto elaborando sobre seu desejo de ver membros da Igreja Adventista engajados no auxílio dos afetados pela pandemia, principalmente na área médica. Ele ver na crise uma oportunidade para quebrar barreiras entre pessoas de diferentes cor, raça, classe, profissão e religião, já que as pessoas simplesmente precisavam de ajuda, de onde quer que ela viesse. “Não importa se o ajudante é branco ou negro, Cristão ou pagão, rico ou pobre.”[12]  O editor da Revista Adventista, Francis M. Wilcox, ecoa o desejo de Ruble, “[já é] tempo que eles [os membros] se tornem inteligentes no emprego dos remédios naturais e no sistema de tratamento que a denominação já conhece por anos.”[13]

No locais onde o tratamento natural foi implementado eles foram bem sucedidos. Além de seguir as recomendações médicas, muitos Adventistas foram além da prática médica do seu tempo e usaram os conselhos de saúde propagados por Ellen G. White e John H. Kellogg no tratamento de doenças, como a fomentação, hidroterapia, exercício ao ar puro, e dieta vegetariana. O sucesso desses tratamentos simples foram notáveis. Na escola Adventista em Hutchinson, no estado de Minnesota, quando noventa dos cento e vinte alunos internos apresentaram sintomas (possivelmente foram infectados), dr. H. E. Larson e uma enfermeira da escola implementaram hidroterapia e outras medidas resultando na cura de todos. A ausência de fatalidades chamou atenção dos jornais locais que reportaram o incidente.[14] 

O sucesso da hidroterapia e outros métodos naturais também foram noticiados em outros centros educacionais Adventistas, como no Southern Missionary College (atualmente Southern Adventist University) e South Lancaster Academy. Lemos um resumo desses resultados na Revista Adventista de Dezembro de 1918.

“A doença conhecida como gripe Espanhola começou sua devastação na América [do Norte ou Estados Unidos] nessa parte do país. Apareceu de forma virulenta em Clinton, uma cidade vizinha, e em partes de Lancaster...uma família inteira de seis morreu. Médicos e enfermeiras sucumbiram, e em alguns casos os mortos ficaram sem atendimento porque os coveiros, trabalhand dia e noite, não podiam acompanhar a demanda. Embora a maioria dos casos [nas escolas Adventistas] fosse de tipo leve, alguns eram muito graves e se tratados pelos métodos ordinários, sem dúvida teriam resultado em fatalidades. Mas a fomentação,... aplicados pelos alunos sob a direção de um de nossos próprios médicos, fizeram maravilhas na recuperação rápida de nossos casos mais difíceis. Os médicos que perdiam seus pacientes dia após dia ficavam maravilhados com o fato de que em nossos dormitórios grandes e lotados, praticamente sem enfermeiras profissionais, não tivemos fatalidades. Nós atribuímos isso a Deus, o fato de colocarmos em prática os métodos de tratar os enfermos que há anos fazem parte de nossa crença denominacional. Não apenas somos gratos pela recuperação de nossos doentes, mas também acreditamos que a experiência pela qual passamos como escola aprofundou nossa fé nesses princípios dados por Deus.”[15]

No estado da Geórgia, Curtis Wood, em seus vinte anos, foi enviado para sua casa gravemente doente enquanto servia na base militar. Curtis que morava em frente ao hospital Adventista, foi tratado com hidroterapia e sobreviveu. Curtis viveu até os 94 anos. Sua filha atualmente com 95 anos de idade, acredita que seu pai foi salvo pelo tratamento natural dos Adventistas.[16]

W. A. Ruble reporta que dos dez hospitais Adventistas que usaram hidroterapia e outros tratamentos em pacientes infectados pelo vírus da gripe Espanhola, apenas 2,8% dos pacientes admitidos morreram. Em comparação, dados gerais nos EUA apontados por Ruble indicavam uma taxa de fatalidade entre 13-40%, dependendo da região.[17] A taxa inferior de mortalidade em pacientes de hospitais Adventistas apontam para eficâcia do sistema de tratamento ali aplicado.[18] Os tratamentos no entanto não eram vistos como uma prática miraculosa sempre eficaz. “Nossa posição, de nenhuma forma, é que a obediência a esses princípios aseguram imunidade contra a doença ou a morte.” É necessário uma fé inteligente e precavida, afirma F. M. Wilcox.[19] 

Além de usar tratamentos naturais, em algumas regiões os Adventistas também trabalharam em parceria com instituições de ajuda humanitária como a Cruz Vermelha afim de atender as necessidades básicas dos afetados pela pandemia.[20] 

Reflexão final

Em meio a atual pandemia, podemos também, como os Adventistas do passado, nos engajar na ajuda dos afetados pelo Covid-19. Devemos nos educar nos princípios de saúde ensinados pela Igreja, como a hidroterapia, o exercício físico, a exposição ao sol, além de outras medidas. Devemos usar nossas habilidades, dinheiro e tempo para ajudar os que precisam de ajuda. Seja fazendo compras para um idoso, evitando com que pessoas de risco se exponha, ou ligando para amigos mostrando que nos importamos com seu bem-estar nesse período de isolamento social.

W. A. Ruble anos atrás perguntou se a Igreja aproveitou o momento da crise para espalhar o amor de Jesus. Espero que ao olharmos para trás, não sintamos o remorso de saber que poderíamos ter ajudados mais.


[1] John M. Barry, The Great Influenza: The Story of the Deadliest Pandemic in History (New York, NY: Penguin Book, 2018)

[2] “News Notes,” Lake Union Herald, 18 de Dezembro, 1918, p.6.

[3] Louis C. Kleuser, Columbia Union Visitor, 31 de Outubro, 1918, p.4-5

[4] Columbia Union Visitor, 7 de Novembro, 1918, p.1

[5] Columbia Union Visitor, 31de Outubro, 1918, p.5

[6] Ibid.

[7] Ibid., 7 de Novembro, 1918, p.4.

[8] H. A. Rossin, “Obtuaries,”  Columbia Union Visitor, 6 de Maio, 1920, p.5.

[9] W.A. Ruble, “After Influenza, What?” Adventist Review and Sabbath Herald, 31 de Outubro, 1918, p.18.

[10] L. A. Hansen, "An Influenza Precaution," Adventist Review and Sabbath Herald, 16 de Janeiro, 1919, p.30

[11] Ibid.

[12] Ibid.

[13] Francis M. Wilcox, "The Dangers of the Last Days," Adventist Review and Sabbath Herald, 30 de Janeiro, 1919, p.7; ver também W. A. Ruble, "What are You Going to Do About It?", Adventist Review and Sabbath Herald, 30 de Janeiro, 1919, p.2.

[14] “Complimentary to the Danish-Norwegian Seminary,” Advent Review and Sabbath Herald, 9 de Janeiro, 1918, p. 32.

[15] M. Ellsworth Olsen, “Quando Caminhamos na Luz,” Adventist Review and Sabbath Herald, 26 de Dezembro, 1918, p.29.

[16] Como reportado por Zeno L. Charles-Marcel e Elise Harboldt, “Concerned About Covid-19? Hydrotherapy May Play a Role!,” Adventist World, Publicado 17 de Abril, 2020 (https://www.adventistworld.org/concerned-hydrotherapy-may-play-a-role/)

[17] W. A. Ruble, Section As We See It, "Influenza and its Deadly Work," e "Sanitarium Treatment of Influenza," Life & Health, Maio 1919, p.114-115

[18] Para mais informações sobre os tratamentos naturais Adventistas e a comprovação científica delas ver Zeno L. Charles-Marcel e Elise Harboldt, “Concerned About Covid-19? Hydrotherapy May Play a Role!,” Adventist World, Publicado 17 de Abril, 2020 (https://www.adventistworld.org/concerned-hydrotherapy-may-play-a-role/). Para mais informações sobre o Covid-19, a importância de vitamina D, e um estilo de vida saudável, ver os vídeos explicativos do médico e professor do hospital Adventista de Loma Linda na Califórnia,  Roger Seheult, https://www.youtube.com/watch?v=ha2mLz-Xdpg&t=2421s

[19] F. M. Wilcox, "The Danger of the Last Days," Adventist Review and Sabbath Herald, 30 Janeiro, 1919, p.7.

[20] Lora E. Clement, "Fighting the 'Flu': The Heroic Work of the Red Cross," Adventist Review and Sabbath Herald, 23 de Janeiro, 1919, p.17-18, Para outros relatos além dos aqui mencionados ver, 23 de Janeiro, 1919, p.17-18. Para outros relatos além dos aqui mencionados ver Michael W. Campbell, "Adventists and the 1918 Influenza Pandemic," Adventist World (https://www.adventistworld.org/adventists-and-the-1918-influenza-pandemic/; http://www.columbiaunion.org/content/how-visitor-reported-1918-1920-pandemic)

 

 


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